O Viver Sem Manual é um blog sobre o contemporâneo, sobre o que me aflige de uma forma geral e como lidar com essas angústias que podem vir de todos os lados. Literalmente, é um exercício de reflexão sobre uma vida que não tem manual de instrução e quase sempre caminha sem direção.
Aviso aos desavisados (e não somos todos?) – esse texto contém alta dose de reflexão psicanalítica (ficou assim e o deixei assim. Discutirei esta questão mais tarde na minha terapia, obrigado!).
Singularidades hiperindividualizadas e uma pontada de hipocondria
Eu gosto de começar meus textos fazendo perguntas. A deste texto é a seguinte: já conversou com alguém que pressupõe que suas mazelas são ou precisam ser sempre maiores que as suas? Se você ficou doente a outra pessoa passou por uma experiência de quase morte; se você perdeu o emprego, a outra está devendo rios de dinheiro e até para agiota.
Confesso que me irrito com a transformação das mazelas em KPIs (indicador chave de desempenho), para definição de quem sofre mais ou quem leva mais pancada da vida, até porque não há competição nenhuma, já que o outro que se coloca nesse lugar sempre será o vencedor.
Esse ego sofredor é, da minha perspectiva, um ego hiperindividualizado.
Não sou o primeiro a escrever sobre hiperindividualização, ou seja, nada de novo será desmascarado por aqui, porém essa ideia me ocorreu recentemente ao me deparar com algumas situações.
O outro que não sou eu
E, obviamente, fiquei a pensar. O que leva um sujeito a ser tão autocentrado ao ponto de quase apagar o Outro da sua própria subjetividade?
Toda criança tem uma fase de imitação, porque é uma das formas como aprende, ou seja, ela mimetiza comportamentos, falas e lógicas para desenvolver diversas competências, em especial a fala. Nesse processo, a criança também introjeta partes do Outro, que pode ser sua mãe, seu pai, um irmão/irmã, professor e assim por diante.
É normal, por exemplo, notar que a criança está andando como o pai ou a mãe, ou usando gírias e palavras muito características de um ou de outro. Essa introjeção é importante para manter viva essa sensação moral da existência do Outro e, também, para contribuir com a separação psíquica entre quem a criança é, e quem é o Outro, evitando misturas e até esquecimentos de si.
O problema com a hiperindividualização é o apagamento do Outro, por excesso de defesa de si mesmo.
O meu Eu é maior que o seu
Os sujeitos muito hiperindividualizados têm ótima memória, chegam a ter uma memória quase fotográfica, com pontuações bem assertivas de datas, horas e detalhes que passariam despercebidos pelos outros pobres mortais (claro que nem todo mundo que tem uma ótima memória é um sujeito hiperindividualizado).
Essa hipervalorização de si e da própria narrativa, como sendo de um protagonismo patológico, é um mecanismo de defesa por se configurar como uma forma de sustento do Ego. O Ego fortalecido nesse lugar de valorização falaciosa não desfalece com qualquer empurrão mais brusco.
Por isso, o Ego desse sujeito precisa ser maior que do Outro, já que sofre constantemente as agruras de ser quem é. O Ego desse sujeito tem que ser mais forte, mais agressivo, mais vociferante, tem que ser mais falocêntrico.
Sejamos honestos, o que mais temos visto na política e nos campos de embate ideológico são construções egóicas hiperindividualizadas, forçosamente e aparentemente masculinistas, como campo da salvação de si e do mundo.
Os valores publicizados na política, no consumo, no entretenimento e nas relações sociais estão focados na exaltação do Ego, quer dizer, na valorização do que torna o sujeito único, mas não naquilo que o torna sociável e parte de um coletivo. Reforçar socialmente o papel coletivo do sujeito o colocaria em um lugar de cuidado com o próximo, com o meio ambiente e com tantas outras situações que são diametralmente opostas ao sistema econômico vigente.
Basicamente, não interessa muito que o sujeite pense nos outros!
Singularidades Hiperindividualizadas e uma pitada de Hipocondria
A hiperindividualização está bem relacionada a hipocondria, mas de um jeito diferente. Não é o medo de ficar doente em si que prevalece, mas sim o quanto é possível gozar (no sentido psicanalítico), com a fantasia da doença. Porque a doença é uma propriedade, portanto, ela pertence única e exclusivamente ao sujeito que dela se apropria para usá-la como um movimento de exposição de si.
Se o sujeito não é nada e realmente não somos lá muita coisa, porque sendo quase nada não causamos dissabores ao status quo, então ele se sente constantemente aterrorizado, com medo desse apagamento, a qualquer momento, de si mesmo.
Desta forma, a hipocondria funciona como uma eloquente expressão da hiperindividualidade do Ego, que se compraz em mostrar que ele não é esse “nada”, que insistem (quem insiste?) que ele seja. O Ego hiperindividualizado sobrevive gritando e se fazendo ouvir pelas suas doenças (imaginárias ou não).
É apenas no campo das suas doenças que o sujeito hipervalorizado pode ser protagonista da própria história, evitando a sensação amedrontadora de não ser nada.
Cuidado - se você fala muito de suas doenças, talvez, seja um sujeito hiperindividualizado.